ATENÇÃO: ESSE TEXTO NÃO É UMA REVIEW, MAS PODE CONTER ALGUNS SPOILERS!
Criada pelo escritor, roteirista e editor Marcelo Cassaro, e ilustrada em grande parte por Érica Awano, Holy Avanger começou com uma aventura do RPG Tormenta, publicada pela antiga revista Dragão Brasil - que chegou a ser cancelada por um tempo, mas posteriomente retornou em formato digital - criada por Cassaro ao lado de Rogério Saladino e José Trevisan, no longínquo ano de 1998. Com o sucesso do RPG, Cassaro uniu forças com Awano, para dar vida ao mundo mágico-medieval de Arton e seus personagens, em uma série de quadrinhos chamada de “Holy Avenger” (nome proveniente da “Holy Sword”, espada muito conhecida e utilizada por paladinos no RPG Dungeons And Dragons), publicada em 42 edições em formato americano no ano seguinte.
Aos olhos dos leitores mais jovens, as dúvidas devem começar com “Holy Avenger? É um quadrinho estadunidense? Mas espera, Marcelo e Érica parecem nomes brasileiros... E o desenho ainda é em estilo mangá! O que raios está havendo aqui?!”. Baseado no crescente sucesso das importações de animes e mangás no final do século 20 no Brasil, obras nacionais ilustradas no estilo dos mangás começaram a ser produzidas com semelhante qualidade as japonesas, mas com um toque abrasileirado, tanto na arte quanto no roteiro (este último claramente inspirado em pérolas da dublagem nacional em animes). Com Holy Avenger, o diferencial foi o roteiro, que não força semelhanças com a Terra do Sol Nascente ou com o País do Futebol, trazendo uma nova personalidade completamente nova á história, mesmo com um caminhão de referências vindos de ambos os lados.
A história é regada de personagens originais em meio a um mundo com uma mitologia rica, com o foco em 4 personagens principais, a começar por Lisandra, uma druida poderosíssima que foi criada por animais e monstros gigantes na isolada ilha de Galrasia até ser encontrada por Tork, um troglodita anão e rabugento, que ensinou a garota a falar e andar, até deixa-la sozinha de novo na ilha, com a ordem de que nunca fosse ao mundo dos homens. Ordem que ela vem a descumprir quando encontra o corpo de um guerreiro paladino e recebe a missão de coletar os Rubis da Virtude, para ressuscitá-lo, assim ela parte para a grande cidade de Valkaria em busca de Leon Galtran, um famoso ladrão. Após uma série de desventuras na cidade dos homens, Lisandra é salva por Sandro Galtran, o filho do famoso ladrão, que ainda é um aprendiz. No fim, a druida cumpre sua missão e volta para a ilha atrás dos rubis restantes, deixando o simplório aprendiz para trás, que, ao ir numa taverna contar sobre sua aventura, descobre que a garota simples pode ter cometido um engano, pegando o Rubi errado (ele não sabia que existia mais de 1), indo atrás de Niele, a “Maga Mais Poderosa do Mundo”, que aparentemente está em posse do “Rubi verdadeiro”. Após mais algumas desventuras, o rapaz se une a maga de origem élfica atrapalhada, para encontrar Lisandra e lhe devolver o rubi, enquanto essa continua sua jornada pelo mágico mundo de Arton.
Mesmo durante a publicação da série, um CD Drama contando pedaços da história de Holy Avenger foi gravado, contendo vozes de dubladores famosíssimos como Márcio Seixas e Guilherme Briggs, e uma animação tem sido anunciada em estado de produção desde 2007, mas sem atualizações desde então (segundo Guilherme Briggs em entrevista ao podcast “Nerdcast”, vozes originais já estariam sendo gravadas – ele inclusive ainda interpretando o ladrão Sandro Galtran - mas a animação ainda não começara a ser produzida por falta de orçamento). A série voltou um pouco aos holofotes com o lançamento de 4 edições encadernadas publicadas pela Jambô, celebrando o aniversário de 20 anos obra em 2019, contendo toda a saga, páginas coloridas, entrevistas e informações sobre o criador, ilustradores e coloristas, além de capas com artes fenomenais (ainda podem ser encontradas na Amazon por preços que variam dos 40 aos 50 e poucos reais). Agora a pergunta é, se é uma série tão premiada e tão querida, por que é tão pouco conhecida pelas novas gerações?
Eu posso dizer que tive sorte por conhecer Holy Avenger antes do lançamento das edições encadernadas, já que meus primos mais velhos tinham entre 16 e 14 anos de idade quando Holy Avenger chegou ás banquinhas de jornais no final da década de 90, e guardaram com carinho todas as suas 42 edições, que, anos depois, mais precisamente em 2011, emprestariam essa obra para sua priminha mais nova, de apenas 10 aninhos, como mais uma tentativa de introduzi-la ao mundo nerd (algo que funcionou maravilhosamente bem, diga-se de passagem). Mas é claro que depois de 7, 8 anos sem ter dado sequer uma olhadela, ter lido Holy Avenger pela 2° vez aos 18, foi uma experiência completamente diferente, a começar pelo design. Dá pra sentir a inspiração do traço de Awano, nos animes shoujo dos anos 90, principalmente Sailor Moon, Sakura Card Captors e Guerreiras Mágicas de Rayheart, mas os traços de ecchi na história (gênero muito mais popular na década de 90, por conta de obras como Love Hina) realmente quebra a linha da história, de forma que hoje em dia não seria tão bem aceito pelo público geral.
Claro que essa questão do design provocante da Niele é opinião minha, mas pensando como um todo, num país onde a produção de obras de animação só rende dinheiro em retorno se for focada num publico infantil ou geral, se uma elfa que anda praticamente pelada aparecesse na hora do almoço da família tradicional brasileira na Tv Cultura, seria uma loucura (isso sem contas características clássicas do gênero “Ecchi”, onde a mão do protagonista masculina “conveniente-acidentalmente” repousa diretamente sobre os seios de alguma personagem peituda – quando não é de uma das protagonistas). A animação teria mais chances de fazer sucesso respeitando toda a obra original se tivesse sido produzida na época de lançamento, onde o “politicamente correto” estava começando a existir (se fosse na década de 80 rapaz, tinha sido produzido na hora), mas hoje em dia seriam necessárias muitas mudanças para tender um público maior, e não estou falando apenas de mudanças de design (vale lembrar que produzir um filme de uma Galinha Pintadinha da vida, é muito mais barato que 1 episódio de Dragon Ball por conta do estilo da animação - quanto mais detalhado, mais caro), mas no próprio enredo talvez fossem necessárias.
Muito bem escrito, o mangá brasileiro foi sucesso de crítica e vendas durante sua publicação, rendendo por 2 anos seguidos o Troféu HQ MIX, que premia os melhores quadrinhos nacionais, além de ter alcançado o 6° lugar no prêmio “Kokusai Manga Shou”, prêmio criado pelo antigo ministro de relações exteriores japonês (e ex 1° ministro do Japão, atual ministro das finanças, Tarô Asô), para premiar mangakás não japoneses, como uma obra que fez tanto sucesso no início dos anos 2000, praticamente desapareceu da comunidade otaku nos anos seguintes?
Lisandra é uma druida criada no meio de animais, não tem o costume de usar roupas quando está em casa, mas quando vai ao mundo dos homens, ela usa um conjunto lilás de um top e saia rasgados, que se tornaram sua marca registrada, mas que, apesar de curtos, possuem uma explicação plausível = Lisandra é uma jovem simples, para ela, roupas só servem para se proteger do frio, comprar uma roupa nova, não faz sentido se você sequer sabe o que é dinheiro. Ela só usa aquela roupa porque Tork, que a criou como uma filha, lhe deu de presente, ou seja, para ela, é um presente, que mesmo velho e rasgado, ela não quer se desfazer. Agora Niele já um caso mais complicado, já que suas roupas são basicamente tiras de couro, que se enroscam por suas pernas, e cobrem parcialmente suas partes intimas. A única explicação dada para esse design... inusitado na história, era que Niele se vestia igual a deusa da magia. A elfa protagoniza vários momentos em que aparece nua (na sua primeira aparição inclusive ela fica sem roupa alguma em 90% da edição), além de sua comunidade extensa de fãs por toda Arton que exaltam sua beleza (e principalmente seus seios enormes), ela deixa bem claro que é “linda demais para se ter raiva”. Claro que no futuro descobrimos que ela tem motivos sombrios para demonstrar tanta autoconfiança, e sempre bater na tecla de ser a “maga mais poderosa de Arton”, já que seu gênio irresponsável e palhaço (ela protagoniza ótimos momentos onde se veste como Usagi Tsukino de Sailor Moon, e canta temas de aberturas dubladas de animes clássicos como Dragon Ball) a levou á fazer algo horrível, que resultou na morte de quase toda a população élfica do mundo.
Há lutas com mortes, sangue, mutilações, pessoas se transformando em zumbis, assassinatos chocantes, coisas que seriam pesadas demais para o público infanto-juvenil na TV aberta nos dias de hoje. Ao mostrar minhas edições de Holy Avenger á um grupo de amigos na faculdade de cinema, vários (a maioria garotas), elogiaram as edições, e os que leram até se divertiram com a história, mas criticaram durante os designs de várias personagens sexualizadas. Ou seja, querendo ou não, Holy Avenger, mesmo sendo uma boa obra, está correndo o risco de ser lembrado pelo seleto grupo de nerds que hoje está entrando na casa dos 40/50 anos de idade, do que de ser comentado pelas novas gerações. Infelizmente muito do que era amado e exaltado nas décadas atrás cai em desuso, se torna incomodo até.
Falando como uma fã da história, eu não quero que Holy Avenger seja esquecido, porque não é só uma aventura de RPG, é uma trama que fala de traumas, perdas, dor, amor, lealdade, redenção e amizade, com aquele toque clássico de comédia “Made in Brasil”. Mas hoje, quer seja apresentado ao publico na TV aberta, ou numa plataforma de streaming por aí, mudanças precisam ser feitas (eu de verdade não entendo como eles ainda não venderam a ideia pra Netflix porque, rapaz ia ficar uma coisa linda de morrer, e eles teriam uma puta liberdade criativa – vinde Castlevania), e espero que os criadores ainda amem essa série ao ponto de colocarem a mão na massa para não deixarem essa obra ser esquecida no futuro.
Olá leitores do "Ciência nas HQ's", aqui é a Malu e esse foi meu 1° texto publicado aqui, e espero que tenham gostado! ^-^ Quem puder deixar um comentário aqui embaixo eu agradeceria eternamente (de elogios à críticas construtivas, tudo é bem vindo) <3!
Oi, Malu! Adorei seu texto! Vc passa muito conhecimento e conseguiu despertar o desejo de conhecer melhor a obra. Deixe mais seus textos por aqui. O público agradece!
ResponderEliminarMuito obrigado pelas informações. Fiquei curioso por conhecer Holy Avenger, pois você soube descrever muito bem o que a obra oferece. Traga mais do seu conhecimento.
ResponderEliminarA relaçao galinha pintadinha x dragon ball foi muito boa! Kkk... fiquei imaginando direitinho os desenhos e visualizar as diferenças descritas! Arrasou! 👏🏻
ResponderEliminarOi, Malu. Ótimo texto, bem informativo e trazendo uma análise bacana. Por coincidência, recentemente estava discutindo sobre o lançamento da nova versão do RPG de Tormenta com o meu grupo de RPG e acabamos falando um pouco de Holy Avenger também, já que a história da HQ se passa no mundo / é sobre os personagens originalmente criados para esse cenário de RPG (antes mesmo de ser um cenário). Nem discuto sua análise, porque de fato Holy Avenger não envelheceu bem pelos motivos que você tão bem expôs, mas queria acrescentar umas coisas que relembrei quando rolou esse papo no grupo: naquela época, RPG (como quase tudo de cultura pop) era um hobby muito masculino e não raro era usado para power fantasy e punhetagem dos jogadores. Eu acompanhava a revista Dragão Brasil, onde os personagens de Holy Avenger inicialmente surgiram como conteúdo para ser utilizado nos jogos de RPG e , nossa, era ainda pior! Uma coisa muito bacana da HQ, que ainda hoje é exceção, infelizmente, foi a participação de mulheres na produção, como a já citada Érica Awano, além de Petra Leão, Fran Briggs - participando inclusive no roteiro ou acrescentando suas personagens originais na obra (que até tiveram um spin off). A presença delas sem dúvida nenhuma fez a obra mais palatável pro público feminino. Acho que você lembra de algumas piadinhas da Awano se recusando a desenhar certas coisas mais "hentai" que o Cassaro em tese teria feito no roteiro. Então, nesse ponto, por essa participação de mulheres no roteiro e desenho, apesar dos fanservice com Niele, Lisandra e outras, rolou também Sandro de sunguinha e a presença de personagens femininas que não serviam apenas pra ser sexies, mas que tinham objetivos, personalidade. E passa no teste de Bechdel! Hahaha. Enfim, só acrescentando isso. Adorei o texto! Fico feliz de ter feito minha parte pra te trazer pro mundo nerd hahaha
ResponderEliminarAmei o textão Bebetinha💙 fico muito feliz por você ter lido ele (e acrescentado tantas informações ótimas), já que se não fossem você e o Arthurzinho nunca teria conhecido Holy Avenger ✌️ valeu pelo suporte, primaaaa
EliminarEssa sua analise é pensando em um público infantil?
ResponderEliminarPois animes no gênero "love Hina" ainda fazem muito sucesso até hoje. E não são para crianças.
Então pensando por esse lado, a sexualização e roupas das personagens n]ao teria problema nenhum. Se funciona para os animes, estilo love hina, que fazem sucesso até hoje e todo ano surgem novos, por que não funcionaria em Holy Avenger?
Ou na sua visão o anime teria que necessariamente ser para crianças?
O que teria problema com a violência dai tb.
A experiência de seus colegas pode ter sido, também, questão de público. As pessoas que acham o fanservice de Holy Avenger (que, no fim das contas, é bem brando) excessivo provavelmente nunca foram a demografia alvo da obra. Dada a popularidade de mangás ecchi e derivados no dia de hoje, não creio que mudanças de identidade seriam uma boa ideia - só serviriam para afastar os fãs antigos.
ResponderEliminar